sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sobre a noção utilitarista das coisas

O senso comum traz um conceito utilitário das religiões, na forma de retribuição aos fiéis. A fé fica a serviço do crente, como um instrumento de obtenção de benefícios no dia-a-dia. Nele, a oração, os sacramentos, a adoração, prestam tributo, de maneira que o fiel, ao orar, aguarda uma resposta da divindade, as mais das vezes sob forma material. Pede-se, e Deus tem que atender, caso contrário a religião não atinge o seu objetivo. Os panteões de santos, orixás, deidades, existem para a satisfação das necessidades ordinárias.
É tão arraigado este sentimento nas pessoas que, inobstante toda a doutrina meticulosamente explicitada por Francisco Cândido Xavier em sua vida de abnegação e exemplo, no sentido de prestar caridade ao próximo e ver na espiritualidade um caminho de transcendência para patamares superiores, pouco tempo depois de sua morte, seu túmulo se tornou ponto de peregrinação em busca de "milagres"; as pessoas pedem a ele retribuições materiais, como pediriam a um santo católico. Vão à sua lápide em busca de curas e da obtenção de emprego, por exemplo.
Em maior ou menor grau todas as religiões teem este aspecto, muito embora em seu âmago o ensinamento não indica tal direção. Veja-se o Sermão da Montanha: Jesus insiste em que não devemos pedir, senão agradecer, que estejamos tranquilos quanto ao que comer ou vestir, porquanto seja suficiente a busca pelo Reino, e as demais coisas nos serão dadas por acréscimo.
Na verdade vivemos uma época em que o utilitarismo atingiu o auge. O egocentrismo dita em nós a intenção pervertida de que todas as coisas nos devem servir, e conceitua-se também como coisas os animais, as pessoas, os sistemas, as religiões. Não se cogita sirvamos ao meio, e sim que este nos sirva.
É usual alguém não ingressar em uma religião porque esta não traz em seu bojo conceitos que justifiquem sua conduta egótica, ou então sair de alguma religião porque esta não atendeu à sua expectativa: Deus, naquela religião, não satisfez às suas necessidades, por que então continuar naquela fé?
Na antiguidade os egípcios contruíram enormes efígies e pirâmides a Amon Ra e Osíris, na Grécia, Péricles fez o Partenon para Atenas; em Roma, inúmeros templos aos seus deuses, os judeus tinham o Grande Templo para Javé; na Idade Média, ergueram-se catedrais suntuosas para o Deus católico.
Hoje, contudo, erigem-se templos a um estranho deus.
Enormes Shopping Centers são contruídos, onde acorrem religiosamente milhões de fiéis. Eles vão adorar seu deus Consumo, que na concepção contemporânea, mantém e sustenta a todos. O sacerdote é o comerciante, o sacrifício está em utilizar o cartão de crédito/débito, o qual é suprido com nosso devocional serviço em trabalhos extenuantes, em prol da manutenção do sistema consumerista.
Neste contexto, como a Natureza está a nosso serviço, Deus que a criou se reduz a um vassalo. Ele que trate de suprir nossas necessidades de consumo, assim se justifica lhe prestemos alguma reverência. Caso contrário, O descartamos como "hipótese desnecessária". Afinal, para que um Deus, se já temos o sistema de consumo a nos sustentar?
Eis aqui um demoníaco círculo vicioso que, a pretexto de manter a civilização vai, na verdade, solapando pouco e pouco - não tão pouco! - nossa liberdade, vai nos tornando sutilmente escravos. Imaginamos que somos consumidores, mas na realidade o sistema que construímos é que nos consome.
A religião, como tudo o mais, escorrega no lodo desse bueiro, desse imenso buraco negro criado por mentes doentias que um dia, para a satisfação de seus egos, resolveram negar a Deus e nossa própria natureza, para criar este circo de horrores, este sistema que, agora, como um moedor de carne automatizado, nos esmaga tenazmente.
O cerne do problema se localiza justamente no mencionado utilitarismo. O conceito pervertido de que tudo nos deve servir - e não o contrário -, é o gatilho que dispara o mecanismo dessa imensa máquina em que estamos. Parar de acionar esse gatilho é simples como apagar uma lâmpada em casa, desde que estejamos dispostos a esticar o braço e apertar o interruptor. Contudo, o medo de que fiquemos nas trevas é tão grande que preferimos manter essa luz artificial acesa.
Não realizamos em nós que além dessa lâmpada diminuta que temos feito, basta abrir a janela e um sol imenso poderá nos inundar com sua luz ilimitada.

Um comentário:

Adalberto Ricardo Pessoa disse...

Eu gostei muito do texto, e concordo plenamente. Destaco o trecho em que é dito que achamos que somos consumidores, mas na verdade, nós é que somos consumidos, com nossos esforços de trabalho voltados para manter o sistema utilitarista-capitalista de consumo.
Excelente observação.
Abçs