Observo meu cãozinho. Cheguei em casa, quase exatamente meia hora após minha chegada, o suficiente para que ele saiba eu já ter me trocado e ido ao banheiro, ele gane baixinho. Vou ao pote e lhe coloco ração. Ele pára de ganir, abana o rabo e põe-se a comer.
Aos domingos – e tão somente aos domingos, o que é surpreendente! - logo após eu acordar, parece que ele aguarda apenas o café da manhã, em seguida começa a correr de um lado para o outro, apontando com o focinho a porta da rua. Aquieta-se quando ponho-lhe a coleira e saímos para o passeio.
Segundo consta, os cães são “animas irracionais”, em certa medida porque não têm em seu comportamento a complexidade típica dos humanos. Creio, contudo, que a racionalidade de um e de outro é questão de grau e não de natureza. O ser humano, por ter conseguido em seu estágio evolutivo, desenvolver uma linguagem mais elaborada, que lhe serve de esteio à uma concatenação de idéias mais extensa. Tão só. Enquanto um homem é capaz de, com a muleta da linguagem, estabelecer raciocínios complexos, o cão estabelece em si raciocínios simples, de causa e consequência que se esgotam neles mesmos. É como se um, o cão, pudesse ligar dois elos de uma corrente de cada vez, enquanto o outro, o homem, pudesse ligar todos os elos da corrente de uma só vez. Mas o sentido de ligação é o mesmo, não há diferença de modo, mas de compasso. O cão que pudesse nomear as coisas talvez elaborasse raciocínios tão bem como um humano.
O comportamento do meu cãozinho, contudo, desvela uma realidade, qual seja, a norma não depende de palavras. Para ele, tanto para mim, da premissa segue o consequente dever-ser. Quando chego em casa, deve ser a ração; quando acordo aos domingos, após o café, deve ser o passeio. Existe, pois, uma relação de direito entre mim e o meu cão. Ela se estabeleceu em conuetudo, e tanto isso é verdade que um cão da rua não se comporta comigo como o faz o meu.
Como fica, pois, diante disso, a tese de que a relação de direito só se estabelece entre pessoas?
Meu cão não é pessoa. Ou é?
Lembremo-nos que o conceito de pessoa é uma fixação legal, tanto assim que há não muito tempo, historicamente falando, seres humanos de pele negra não tinham o status legal de pessoa, eram tidos como bens, sobre que dispunham os senhores de escravos.
Ora, mas isto é uma digressão. Quero chegar, na realidade, em um fato demonstrável pela simples observação: o direito como componente de comportamento não é exclusividade humana, e não pode ser, o mesmo, posto como elemento de distinção entre os homens e os animais. Há direito entre os lobos e entre os veados; os leões estabelecem hirearquia entre si; os golfinhos têm um refinado senso de direito e de valorização da vida, tanto deles como de outros seres; os gatos preservam seu próprio direito à liberdade e os cães, como visto, cobram seu direito à ração e ao passeio.
Se o direito enquanto norma não escrita se estabelece entre os animais e entre estes e os homens, seria ele uma construção da racionalidade como a concebemos? Pergunta-se a Kelsen: a norma fundamental está além do pico da pirâmide? Há uma pirâmide afinal de contas?
Explico-me. A teoria do direito centralizou-se tanto em concebê-lo como produto cultural que olvidou a possibilidade de ser o mesmo produto natural. Que o direito posto decorre da cultura sobre que estabelecido é óbvio. Uma cultura de canibais necessáriamente terá normas permissivas de consumo da carne humana assim como a cultura hindu proíbe o abate de vacas; o processo contudo em que as normas se estabelecem é precisamente o mesmo, qual seja, impor, permitir, proibir.
O cerne desse processo, no entanto, está além da cultura e aquém da racionalidade, diria mesmo que é instintivo e decorre da força das coisas e não da volição. A palavra-chave é sobrevivência.
Digo, embora seja o direito construção humana, não o é baseado no abstrato; tal como a invenção da roda, o direito foi elaborado no contingente, dentro do contexto possível e necessário, nada além disso. Da mesma forma como os lobos estruturam sua hierarquia em prol da sobrevivência do grupo, assim os homens, consoante suas peculiaridades. A complexidade do sistema jurídico humano não o dista, contudo, em natureza, dos animais.
Como disse, uma sociedade de canibais teria leis permissivas ao consumo da carne humana.Assim como em Esparta – e entre muitos indígenas atuais – deficientes físicos eram descartados (mortos) ao nascerem, pelo fato de, por falta de meios técnicos em mantê-los no seio da sociedade, restava lícito tê-los como um pêso e eliminá-los.
Ora, a liceidade depende do contexto social, portanto.
Quando digo, contudo, que o direito é um produto natural, estou longe de dizer que existe um direito natural ao modo que algumas escolas, contrapostas ao positivismo jurídico, defendem. Quero dizer que, por força da ordem das coisas, o direito necessáriamente é, subjaz a toda e qualquer cultura e surgiria em qualquer meio no qual convivessem duas ou mais consciências pensantes, seja de que grau de complexidade fossem os pensamentos. Esta conclusão é importante a que se deduza, caso existam em qualquer parte do Universo, sejam nos mais inóspitos e longínquos planetas, seres vivos conviventes com um mínimo de inteligência, certo haverá entre eles relações de direito e, pasmem!, com a mesma estrutura lógica.
Cabe à filosofia do direito investigar os princípios que norteiam a estrutura lógica do direito, estrutura esta que seria comum àquele que se pratica em qualquer sociedade.
Como disse acima, creio ser o princípio basilar do direito o da sobrevida. Qualquer direito posto deverá necessáriamente garantir a sobrevivência, em primeiro lugar, da sociedade que regula e, em segundo, dos indivíduos que a compõe. Por mais individualista que se proponha uma sociedade, observa-se que nunca o conjunto de normas privilegia o indivíduo em detrimento da sociedade, pelo simples fato de que, se isso acontecesse, a sociedade sucumbiria e consequentemente o próprio indivíduo. Trata-se o direito, pois, de uma tessitura normativa garantidora da sobrevivência de uma sociedade determinada. A transgressão da norma constitui um ato agressivo à sociedade, e por isso é imposta uma sanção, que é um ato agressivo, teóricamente de mesma intensidade, ao transgressor, no pressuposto lógico de que duas forças iguais e contrárias se anulam.
Disto decorre o segundo princípio: o da equidade. Significa que em qualquer sociedade, as forças exercidas dela em face dos seus componentes, destes entre si e em face dela, sociedade, devem, em um conceito ideal, ter uma resultante igual a zero. Esta percepção corretamente definida poderia possibilitar uma avaliação quantitativa do estado de uma dada sociedade, de tal sorte que uma sociedade com resultante – 1 estaria desiquilibrada em detrimento do intivíduo; e com resultante + 1, desiquilibrada em detrimento da sociedade, por exemplo. Tal exatidão de cálculos, embora teóricamente possível, é na verdade quimérica, primeiro por ser praticamente inútil (de nada adiantaria a Rosbespierre descobrir que a sociedade francesa estava com uma resultante – 27,5 pois isso não o livraria da guilhotina); e segundo ( isto é muito importante) em razão da dinâmica dos fenômenos sociais: qualquer índice obtido já estaria superado no momento seguinte. Toda sociedade, no decorrer da história, oscila seus índices do negativo ao positivo (por vezes o interesse social se sobrepõe ao indivíduo e vice-versa), bastando dizer que uma sociedade sadia é aquela que se mantém em uma zona segura em torno de zero.
O terceiro princípio é o da efetividade das normas postas. De fato, nada adiantaria uma textura normativa criada para bem da sobrevida, estruturada conforme o princípio da equidade, sem que fosse efetiva. Esta efetividade necessária, contudo, não pode decorrer do próprio direito posto, mas de um elemento eminentemente subjetivo, qual seja, o convencimento dos indivíduos quanto a ela. Os indivíduos precisam acreditar no direito para obedecê-lo. As sociedades se utilizam, basicamente, para efetivar o direito, do argumento religioso ou ideológico. A força, em si, quando não respaldada por argumentos tais, recai no vazio e sempre resulta na resposta dos indivíduos, que acabam se utilizando de maior força, esta com argumentos. Tal é o destino dos governos tirânicos que tentam se estabelecer sem respaldo ideológico.
O tripé do direito posto é, portanto, composto por dois elementos objetivos (a sobrevivência e a equidade) e um elemento subjetivo (a efetividade). Este tripé se estabelece em quaisquer sociedades, humanas, animais ou alienígenas, caso existam. Vejamos: dois cães disputam um osso. O bem da vida buscado, em nome da sobrevivência, é o osso. O direito posto, no caso, se firma na posse do osso pelo mais forte (equidade negativa), com base no convencimento de um deles (um dos dois desiste ou é derrotado). A matilha, contudo, quanto mais numerosa, estabelece entre si sistemas de acordos e conveniências atenuantes da equidade naturalmente (de forma a que tenda a zero), em face das pressões internas e externas. A sobrevivência do grupo em dado momento se torna mais importante que a sobrevivência individual, de sorte que é observável, os animais cooperam entre si pelo objetivo comum. Quem já viu leões caçando em grupo sabe o que digo.
A dogmática do direito via de regra de ocupa da equidade, deixando as questões da sobrevida e da efetividade para outros ramos do conhecimento. Penso, contudo, que um aplicador da norma (seja ele um Juiz, um delegado ou um preposto do governo, por exemplo), deve se versar nos três elementos, sob pena de não o aplicar corretamente. As normas fluem no seio da sociedade muitas vezes mortas, pois criadas em contraponto à sobrevida ou a despeito da efetividade. Se o aplicador não observar estes aspectos, correrá o risco de cometer erros. O que é justiça em um determinado contexto social pode não o ser em outro, e como uma mesma sociedade muda o seu contexto na linha do tempo, o aplicador deve estar atento a essas mudanças; recorrer ao puro dogmatismo para interpretação das normas, pode se assemelhar ao cego que pensa estar na direção certa, quando simplesmente o viraram na direção oposta.
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